lunes, 30 de julio de 2018



Casa do Sol, Campinas, 2005 por Cristiane Grando

Crônica
Hilda Hilst: procura-me ali, viva
* Cristiane Grando


Chegamos à Casa do Sol numa sexta-feira, dia 4 de fevereiro de 2005, por volta das 15 horas. Entramos pelo portão de ferro, local onde Hilda Hilst costumava, no final das tardes, brincar com amigos de ver o limiar da vida. Olhava para fora do sítio, via o mato ao redor e dizia: "imaginem que estamos vendo o depois da morte". Depois, saía do sítio, e, apoiando suas mãos no imenso portão, olhando por seus vazados, dizia desta vez: "agora já morremos e estamos vendo o que foi nossa vida". Hilda Hilst tinha razão. Do portão, vê-se uma longa entrada, margeada por palmeiras muito altas e, ao fundo, uma casa rosada, altiva: ali ela viveu mais da metade de sua vida.
Naquela tarde de 4 de fevereiro, completando um ano de sua partida pelo caminho da eternidade, a Casa do Sol – que nas últimas décadas acolheu muitos jornalistas, pesquisadores e artistas, amigos e festas – recebeu o padre Erly Guillen para celebrar missa organizada por José Luis Mora Fuentes e Ana Lúcia Vasconcelos, contando com o apoio da CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz).
Eram quase 15 horas quando entramos pelo portão de ferro e avistamos ao fundo, na porta principal da casa, uma das pessoas que luta para preservar a memória de Hilda Hilst: o Zé Luis. Ele vem em nossa direção. Quando chega perto, retiro os óculos escuros e ele me reconhece: faz um gesto de alegria com o rosto e as mãos, dizendo: sejam bem-vindos! Cumprimenta o poeta Leo Lobos, que me acompanha, e seguimos os três em direção à casa. Graças ao esforço de amigos, a Casa do Sol se transformará em breve na Instituição Hilda Hilst - Casa do Sol Viva, que pretende acolher residências artísticas e atividades culturais.
Estando perto da casa, já se ouvia um quarteto de cordas cujos sons fluíam pelos ares do sítio, entre as árvores, interpretando Bach, Villa-Lobos e Carlos Gomes. Nesse ambiente mágico, encontramos a artista plástica Olga Bilenky e Ana Lúcia Vasconcelos, que saem pela porta principal e vêm nos receber. É um encontro de almas. A cada vez que encontramos Ana Lúcia, descobrimos novos laços de respeito e admiração. Naquele 4 de fevereiro fomos privilegiados pelas bênçãos da música e da Natureza – e pela presença da querida Hilda, que vive em cada objeto da casa, em todos os cantos do sítio, em cada palavra de sua obra e manuscritos.
Pouco antes de começar a missa, recebemos as bênçãos de Hilda Hilst na voz da jornalista e atriz Ana Lúcia Vasconcelos: "Não me procures ali / Onde os vivos visitam / Os chamados mortos. / Procura-me / Dentro das grandes águas / Nas praças / Num fogo coração / Entre cavalos, cães, / Nos arrozais, no arroio / Ou junto aos pássaros / Ou espelhada / Num outro alguém, / Subindo um duro caminho // Pedra, semente, sal / Passos da vida. / Procura-me ali./ Viva." (poema do livro Da morte. Odes mínimas)
A missa começou com palavras do padre Erly Guillen que nos surpreenderam: descobrimos um ser à frente de nosso tempo, como foi Hilda Hilst. Durante a missa, sob a figueira que ela amava tanto, a bênção maior foi da Natureza e do silêncio intercalado com os sons das cordas dos violinos. As palavras do padre estavam em sintonia com a personalidade de Hilda, amante da Vida e de todos os seres vivos. Hilda Hilst certamente ficou feliz com a homenagem de seus amigos, provavelmente assistiu à missa sentada em seu balanço sob a figueira. Comportou-se o tempo todo, mas, no final, como disse Mora Fuentes: "ela deve estar rindo de nós".
A figueira da Casa do Sol remete-nos à presença divina. Sob suas folhas, nos sentimos protegidos, em paz; diante de sua grandeza, talvez tenhamos medo. Aliás, toda a grandeza da casa, da vida e da obra de Hilda Hilst provoca medo. Porque Hilda Hilst, ao lado de Guimarães Rosa, é um gênio de nossas letras brasileiras, o que falou a professora e crítica Nelly Novaes Coelho em seu último curso de pós-graduação na USP, em 1999.
Leo Lobos acredita que Hilda Hilst é uma personalidade sem precedentes na América Latina. Antes dela não existiu que se saiba mulher alguma que assumisse com tamanha intensidade um papel social de igual para igual com os homens. Só quem conhece em detalhes sua vida, seus amores e desamores pode compreender isso. Hilda levou tudo ao extremo: a linguagem, as paixões, o amor pelos animais, por exemplo. Chegou a ter quase cem cachorros ao mesmo tempo no canil da Casa do Sol. Muitos ainda vivem aqui: alguns andam livremente pelo sítio; a maioria fica no canil. Alguns participaram da missa, junto com crianças, jovens e adultos, e, em seguida, do coquetel no pátio da casa: cães de vários portes esparramados pelo chão. Nesse pátio conheci a jornalista Carlota Cafiero, do Correio Popular de Campinas, cujos textos tenho lido ultimamente; atores de um grupo de teatro de Barão Geraldo, que têm encenado Agda, texto de Hilda Hilst; a atriz Sabrina Greve; Beatriz, que deixa de ser musa nas páginas de Dante para se transfigurar na atriz e poeta Beatriz Azevedo, amiga do querido Claudio Willer, que me enviara um abraço. Antes da missa, conheci Joaci Furtado, representando a Editora Globo, e a mítica Inês Parada, a quem Hilda se referiu tantas vezes como grande amiga.
Na sala, Zé Luis, Ana Lúcia, Leo Lobos e eu sonhamos com o futuro: o dia 21 de abril, aniversário da Hilda, contará com o lançamento de um CD organizado por Zeca Baleiro, que musicou poemas de Hilda Hilst a serem cantados por Maria Bethânia e Nana Caymmi, entre outras vozes femininas. Comentamos sobre a chuva dos últimos dias em contraste com aquele sol maravilhoso de nossa tarde ao ar livre sob as árvores.
No finalzinho do dia, despedimo-nos os seis no portão de ferro da Casa do Sol: Hilda Hilst (em memória, sempre viva para nós), Zé Luis e Olga, Ana Lúcia, Leo Lobos e eu. Prometemos nos encontrar em breve. Fechamos o dia com a mesma luz que nos acompanhou toda a tarde: o sol foi um presente a mais no dia 4 de fevereiro de 2005!

Texto inédito, escrito em 2005.

* Cristiane Grando é poeta, gestora cultural, professora, pesquisadora e tradutora (português, espanhol, francês). Mestre e doutora em Literatura (USP), com pós-doutorado em tradução literária (UNICAMP), sobre as obras e manuscritos de Hilda Hilst – crisgrando@gmail.com

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