Casa do Sol, Campinas, 2005 por Cristiane Grando
Crônica
Hilda Hilst: procura-me ali, viva
* Cristiane Grando
Chegamos à Casa do Sol numa sexta-feira, dia 4 de fevereiro de
2005, por volta das 15 horas. Entramos pelo portão de ferro, local onde Hilda
Hilst costumava, no final das tardes, brincar com amigos de ver o limiar da
vida. Olhava para fora do sítio, via o mato ao redor e dizia: "imaginem
que estamos vendo o depois da morte". Depois, saía do sítio, e, apoiando
suas mãos no imenso portão, olhando por seus vazados, dizia desta vez: "agora
já morremos e estamos vendo o que foi nossa vida". Hilda Hilst tinha
razão. Do portão, vê-se uma longa entrada, margeada por palmeiras muito altas
e, ao fundo, uma casa rosada, altiva: ali ela viveu mais da metade de sua vida.
Naquela tarde de 4 de fevereiro, completando
um ano de sua partida pelo caminho da eternidade, a Casa do Sol – que nas
últimas décadas acolheu muitos jornalistas, pesquisadores e artistas, amigos e
festas – recebeu o padre Erly Guillen para celebrar missa organizada por José
Luis Mora Fuentes e Ana Lúcia Vasconcelos, contando com o apoio da CPFL
(Companhia Paulista de Força e Luz).
Eram quase 15 horas quando entramos pelo
portão de ferro e avistamos ao fundo, na porta principal da casa, uma das
pessoas que luta para preservar a memória de Hilda Hilst: o Zé Luis. Ele vem em
nossa direção. Quando chega perto, retiro os óculos escuros e ele me reconhece:
faz um gesto de alegria com o rosto e as mãos, dizendo: sejam bem-vindos!
Cumprimenta o poeta Leo Lobos, que me acompanha, e seguimos os três em direção
à casa. Graças ao esforço de amigos, a Casa do Sol se transformará em breve na Instituição
Hilda Hilst - Casa do Sol Viva, que pretende acolher residências artísticas
e atividades culturais.
Estando perto da casa, já se ouvia um
quarteto de cordas cujos sons fluíam pelos ares do sítio, entre as árvores,
interpretando Bach, Villa-Lobos e Carlos Gomes. Nesse ambiente mágico,
encontramos a artista plástica Olga Bilenky e Ana Lúcia Vasconcelos, que saem
pela porta principal e vêm nos receber. É um encontro de almas. A cada vez que encontramos
Ana Lúcia, descobrimos novos laços de respeito e admiração. Naquele 4 de
fevereiro fomos privilegiados pelas bênçãos da música e da Natureza – e pela
presença da querida Hilda, que vive em cada objeto da casa, em todos os cantos
do sítio, em cada palavra de sua obra e manuscritos.
Pouco antes de começar a missa, recebemos as
bênçãos de Hilda Hilst na voz da jornalista e atriz Ana Lúcia Vasconcelos:
"Não me procures ali / Onde os vivos visitam / Os chamados mortos. /
Procura-me / Dentro das grandes águas / Nas praças / Num fogo coração / Entre
cavalos, cães, / Nos arrozais, no arroio / Ou junto aos pássaros / Ou espelhada
/ Num outro alguém, / Subindo um duro caminho // Pedra, semente, sal / Passos
da vida. / Procura-me ali./ Viva." (poema do livro Da morte. Odes
mínimas)
A missa começou com palavras do padre Erly
Guillen que nos surpreenderam: descobrimos um ser à frente de nosso tempo, como
foi Hilda Hilst. Durante a missa, sob a figueira que ela amava tanto, a bênção
maior foi da Natureza e do silêncio intercalado com os sons das cordas dos
violinos. As palavras do padre estavam em sintonia com a personalidade de
Hilda, amante da Vida e de todos os seres vivos. Hilda Hilst certamente ficou
feliz com a homenagem de seus amigos, provavelmente assistiu à missa sentada em
seu balanço sob a figueira. Comportou-se o tempo todo, mas, no final, como
disse Mora Fuentes: "ela deve estar rindo de nós".
A figueira da Casa do Sol remete-nos à
presença divina. Sob suas folhas, nos sentimos protegidos, em paz; diante de
sua grandeza, talvez tenhamos medo. Aliás, toda a grandeza da casa, da vida e
da obra de Hilda Hilst provoca medo. Porque Hilda Hilst, ao lado de Guimarães
Rosa, é um gênio de nossas letras brasileiras, o que falou a professora e
crítica Nelly Novaes Coelho em seu último curso de pós-graduação na USP, em
1999.
Leo Lobos acredita que Hilda Hilst é uma
personalidade sem precedentes na América Latina. Antes dela não existiu que se
saiba mulher alguma que assumisse com tamanha intensidade um papel social de
igual para igual com os homens. Só quem conhece em detalhes sua vida, seus
amores e desamores pode compreender isso. Hilda levou tudo ao extremo: a
linguagem, as paixões, o amor pelos animais, por exemplo. Chegou a ter quase
cem cachorros ao mesmo tempo no canil da Casa do Sol. Muitos ainda vivem aqui:
alguns andam livremente pelo sítio; a maioria fica no canil. Alguns
participaram da missa, junto com crianças, jovens e adultos, e, em seguida, do
coquetel no pátio da casa: cães de vários portes esparramados pelo chão. Nesse
pátio conheci a jornalista Carlota Cafiero, do Correio Popular de
Campinas, cujos textos tenho lido ultimamente; atores de um grupo de teatro de
Barão Geraldo, que têm encenado Agda, texto de Hilda Hilst; a atriz
Sabrina Greve; Beatriz, que deixa de ser musa nas páginas de Dante para se
transfigurar na atriz e poeta Beatriz Azevedo, amiga do querido Claudio Willer,
que me enviara um abraço. Antes da missa, conheci Joaci Furtado, representando
a Editora Globo, e a mítica Inês Parada, a quem Hilda se referiu tantas vezes
como grande amiga.
Na sala, Zé Luis, Ana Lúcia, Leo Lobos e eu
sonhamos com o futuro: o dia 21 de abril, aniversário da Hilda, contará com o
lançamento de um CD organizado por Zeca Baleiro, que musicou poemas de Hilda
Hilst a serem cantados por Maria Bethânia e Nana Caymmi, entre outras vozes
femininas. Comentamos sobre a chuva dos últimos dias em contraste com aquele
sol maravilhoso de nossa tarde ao ar livre sob as árvores.
No finalzinho do dia, despedimo-nos os seis
no portão de ferro da Casa do Sol: Hilda Hilst (em memória, sempre viva para
nós), Zé Luis e Olga, Ana Lúcia, Leo Lobos e eu. Prometemos nos encontrar em
breve. Fechamos o dia com a mesma luz que nos acompanhou toda a tarde: o sol
foi um presente a mais no dia 4 de fevereiro de 2005!
Texto inédito, escrito em
2005.
* Cristiane Grando é
poeta, gestora cultural, professora, pesquisadora e tradutora (português,
espanhol, francês). Mestre e doutora em Literatura (USP), com pós-doutorado em
tradução literária (UNICAMP), sobre as obras e manuscritos de Hilda Hilst –
crisgrando@gmail.com